Luta árdua pela recuperação e os aprendizados que ficam pós-Covid

Com 90% dos pulmões comprometidos, Rafael Lima Bandeira não entubou, mas viveu uma semana que define como “filme de terror”

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Rafael e a esposa, no segundo dia após a alta / Crédito da foto: Arquivo pessoal

A definição clara de um milagre. É assim que o teutoniense Rafael Lima Bandeira descreve sua sobrevivência à Covid-19.

Raros são os casos de pacientes que com 90% do pulmão comprometido conseguiram se recuperar sem entubação e poucos são os sobreviventes após chegar a este estágio da doença.

Rafael é um deles. Cristão de muita fé, membro da Igreja Batista de Lajeado, não deixou de acreditar, em nenhum momento, na recuperação e no retorno ao lar.

Além de crer na força de Deus e no poder da oração, teve foco na recuperação e no autocuidado, com olhar positivo sobre tudo. Avalia estes fatores como determinantes para sair do Centro de Tratamento Intensivo (CTI) com vida.

“Enquanto estava muito mal, nos piores momentos, sempre orei a Deus para ele me deixar viver, me deixar ficar”, recorda.

Falando em fé, é impossível contar esta história de vida ignorando um fato que a antecedeu. Acreditando que Deus se comunica com as pessoas através dos sonhos, Rafael relata que recebeu um forte sinal, não compreendido desta forma quando ocorreu.

Um dia antes de sentir os primeiros sintomas da doença, teve um sonho com um anjo vestido de preto que descia em um pequeno asteroide. Foi até ele questionando quem era. Se apresentando como anjo, este respondeu: “vim te buscar”.

Ao acordar, chorou e contou o pesadelo para a esposa. O receio de sofrer um acidente ou algo assim foi grande, mas jamais pensou na Covid.

Rafael com os pais, irmãos e filhos / Crédito da foto: Arquivo pessoal

Mais tarde, em tratamento no hospital, voltou a enxergar um anjo, mas desta vez ele estava de branco. “Esse veio me salvar pelo jeito”, conta, de forma descontraída, durante a recuperação em casa.

Rafael Lima Bandeira completou seus 36 anos enquanto iniciava a luta contra doença, em 18 de fevereiro. Residente em Lajeado, é casado com a psicóloga Josiane Hilgert Bandeira e tem dois filhos pequenos: Helena (5) e Pedro (2).

Filho de Ângela e João Bandeira, trabalha com escola de futebol em Lajeado e é supervisor financeiro administrativo na unidade da Ivo 10 Academy em Teutônia.

Contágio e os primeiros dias

Rafael sabe como contraiu a doença e isso traz uma das primeiras lições da pandemia, que mesmo seguindo as normas e dentro das atividades liberadas, elas podem sim ser também um canal de contágio.

Com menor incidência do vírus, no período estavam liberados os campeonatos adultos dos tradicionais clubes recreativos de Lajeado, em que atua como treinador com sua equipe, inclusive foram campeões de uma competição.

De 12 a 14 integrantes da equipe se contaminaram a partir deste contato. “Não estávamos fazendo nada errado, os jogos estavam autorizados, mas ocorreu a transmissão”, explica.

Os primeiros sintomas surgiram em um domingo (14/2). Febre forte, fraqueza, dores no corpo, tontura, falta de ar, tosse forte e, em vez de melhorar, não conseguia reagir, foi piorando durante a semana, apesar de medicado e acompanhado com consultas e exames.

Tudo culminou na sua internação na segunda-feira (22/2), no Hospital Ouro Branco de Teutônia. Foram três dias no quarto da internação. Na quinta (25/2) piorou e foi para CTI, unidade de tratamento mais intensivo do hospital, de onde teve alta no dia 4 de março.

Os dias dentro do hospital
Só quem vivencia a experiência da internação pela doença sabe o quanto é difícil estar no ambiente hospitalar, sem presença de familiares e lidando com todo entorno.

Rafael relata que foi difícil pelo fato da doença ter uma perspectiva de óbito muito grande. “Quando você está internado, piorando, vê que o caminho está cada vez mais estreito e esta situação de estar no hospital é bastante dolorosa”, recorda.

Em particular, ainda teve a preocupação do sogro, que internou dois dias depois, e ficaram no mesmo quarto. Porém, com piora do quadro, infelizmente, ele acabou sendo entubado e ficou em coma induzido por duas semanas em Lajeado.

“Eu já tinha tido alta e ele ainda permanecia entubado. Ele teve ainda outras enfermidades, mas está se resolvendo, com bons sinais”, conta.

Rafael com os filhos / Crédito da foto: Arquivo pessoal

Força para acreditar na recuperação

O desafio é grande porque na CTI se vê muita coisa, pessoas chegando, sendo entubadas, indo a óbito, muito sofrimento.

“Como mantive a consciência todo tempo, vivi uma semana dentro deste filme de terror. A gente vê nas reportagens na imprensa e é exatamente isso que acontece. Algo muito chocante”, compartilha.

Explica que é muito delicado estar dentro do ambiente de CTI, que é muito parecido com uma UTI, onde a claridade é presente praticamente 24 horas porque os profissionais precisam de iluminação para trabalhar, o barulho das máquinas dos pacientes entubados é constante, muito alto e incômodo.

“Você observa os profissionais sobrecarregados para atender a todos. Está em um ambiente de intensa e incessante iluminação, onde tem pessoas tossindo, bips a toda hora, em que é difícil dormir, apesar da medicação para tal. Você precisa descansar e lutar contra os sintomas da doença em si, em um ambiente tenso e pesado. É traumatizante e realmente difícil de superar. É algo muito próximo de um filme de terror em que ficamos esperando o que vai acontecer”, explica.

Sua força surgiu de várias esferas, em especial da fé cristã e do poder da oração. Apesar de ser um dos momentos mais delicados, que exigia força sobrenatural, as chamadas de vídeo com a família eram também injeções de ânimo para não desistir de lutar pela cura.

“Eu sentia que estava muito debilitado e percebia a piora diária, mas jamais deixei de acreditar na recuperação, pensava que ia e precisava superar a doença e foquei total na minha melhora. Não no sentido de ser egoísta ou não ter empatia com o sofrimento alheio, com pacientes ao lado, a dois metros de você, mas na situação que me encontrava, se fosse me abalar de maneira intensa com o sofrimento e a dor adicional das outras pessoas, com certeza eu não teria chance de sair. É tudo muito difícil lá dentro. Se você não olhar para si, pensar na melhora, obedecer todas orientações dos profissionais que pedem para fazer exercícios, deitar de maneiras específicas para melhorar a respiração, levar a sério a alimentação disponibilizada, não vai sair. Tudo isso faz parte das etapas para a alta. É uma avalanche, na parte emocional é muito complexo. Tem que criar uma blindagem e focar na tua respiração e melhora”, explica.

Momentos mais difíceis

Foram dias intensos e delicados, mas o mais difícil foi entre quinta de noite e domingo de manhã, na CTI. Neste período passou muito mal, chegou à saturação 54%, lábios roxos indicavam a falta de oxigênio na corrente sanguínea, a visão chegou a ficar turva.

“Foi o momento mais complicado em que os médicos estavam aguardando o tratamento de três dias fazer efeito, com doses cavalares de corticoides. Foi muito complicado. Sofri com muita dor, cansaço, tonturas, febre, estava piorando de um quadro já bem delicado e não conseguia sentir melhoras. O organismo estava perdendo o jogo. Eu precisava reagir e no último momento começaram os resultados que me livraram da entubação. Nesta reação percebi a presença de Deus”, recorda.
Na última tomografia realizada, o comprometimento dos pulmões estava em 90%. Explica que a sorte foi o pulmão não enrijecer, o que fez que com apenas 10% da capacidade o organismo conseguisse se manter vivo.

“Fui até a beira do abismo e consegui dar a volta. Entendo que foi um milagre e o médico usou esta expressão. Eu não conheço nenhum caso que chegou a 90% de comprometimento e não entubou. Poucos pacientes com este nível não foram a óbito. Perceber o quanto isso é raro me faz concluir o quanto fui abençoado. Deus permitiu que eu ficasse. Foi o momento mais delicado, porém também o mais feliz, porque a partir do momento que senti a melhora, comecei a me recuperar, a ter mais vitalidade, sentir-me mais vivo”, detalha.

E assim seguiu de domingo de manhã, melhorando, até alta na quinta à tarde, quando teve alta.

Rafael ressalta a dedicação de todos, desde equipes de limpeza, técnicos de enfermagem, enfermeiros, médicos, todos profissionais, muito competentes, fazendo um trabalho incrível dentro do Hospital Ouro Branco.

“Porém, a força deste vírus é muito grande e ele acaba muitas vezes vencendo, mesmo que as equipes façam tudo que está ao alcance”, relata.

As chamadas de vídeo para a família

As chamadas de vídeo para a família eram, ao mesmo tempo, uma injeção de ânimo, mas também exigiam de Rafael força extra, pois não queria transmitir toda fragilidade.

“Percebia os sintomas aumentando, a situação piorando, fraqueza, organismo debilitado, a gente sabe a sequência que vai acontecendo. É difícil não se emocionar. Você não pode mentir porque a família conversa com os médicos, mas também não quer dar impressão de tristeza ou derrota, de que se entregou ou não aguenta mais lutar”, explica.

Suas conversas foram com os pais, a esposa, com a possibilidade de ver os filhos. Tentava trazer um pouco da verdade, mas sem baixar a cabeça. “Essas conversas são muito difíceis, mas eu me motivava. Isso sustenta a gente, dá vontade de ficar vivo e é importante no tratamento. Apesar de não ter contato presencial, o celular ajuda muito”, acrescenta.

“Eu tinha muito medo de ser entubado, pois não saberia como falar com a família, em tom de até logo ou de despedida”, relembra.

Maior preocupação

Apesar da consciência de estar trilhando um caminho que termina lá, e quanto mais você piora maior é a chance disso acontecer, a morte não era sua maior preocupação.

“Ninguém quer morrer, mas minha preocupação não era a morte em si. Até porque acredito em Deus e sei que ia ficar com ele após a morte, mas estava no meio de uma trajetória e seria um filme interrompido na metade ou até antes”, relata.

Com 36 anos, dois filhos pequenos, esposa, sonhos, sua preocupação era não conseguir voltar para cuidar da família.

Fazendo uma retrospectiva, e isso faz parte do tempo numa CTI, em que a iminência da morte é mais real, pensando no que fez, no que poderia ter feito, no que talvez poderia ser diferente, estava tranquilo e sentia-se em paz em relação à sua vida.

No entanto, sua preocupação era como tudo iria se suceder, caso não conseguisse voltar. “Apesar do medo em relação à hipótese de eu faltar e não poder cuidar da minha família, tinha a certeza de que meu pai iria sempre zelar pela vida e bem-estar deles”, ressalta.

Depois, surgiu a segunda preocupação, com as sequelas após a melhora. Quando se conclui que não corre mais risco de morte, fica a dúvida de como será a recuperação. “A preocupação passou a ser como seria, se a esposa teria que cuidar de mim por muito tempo, se precisaria de uma equipe cuidando, se poderia voltar a trabalhar, são situações que passam pela cabeça”, compartilha.

Recuperação lenta

No caso da Covid-19, alta não significa recuperação total e retorno à vida anterior. Rafael explica que o pós-Covid é muito doloroso, com diversos sintomas ainda bem pesados, que os médicos chamam de sequelas.

“Não é mais a Covid viva atuando no organismo, mas é o dano que ela causou no organismo e a missão é tentar recuperar-se destes efeitos”, relata.

Para quem sofreu de forma mais intensa, é tudo muito lento e exige esforço. “O vírus age na tua capacidade pulmonar, trazendo menos oxigênio ao organismo e este déficit faz falta para as funções motoras e também cognitivas”, compartilha.

Apesar de todo cuidado e de seguir as orientações dos profissionais que acompanham o paciente, o restabelecimento das funções é muito devagar. Cuidados na alimentação, exercícios, fisioterapia, caminhadas acompanhadas e monitoradas e uma simples refeição ainda precisa ser feita devagar porque representa cansaço.

“A melhora ocorre a cada dia, mas hoje (7/4), 32 dias após a alta, ainda sinto muitos efeitos. Consegui largar o oxigênio, mas a fala ainda está mais devagar e preciso de um esforço maior de concentração para fazer atividades básicas. Se sofre muito mais para fazer o simples. As coisas vão retornar, mas percebo que ainda estão longe de uma normalidade”, explica.

O que muda pós-Covid

Rafael conta que a percepção de vida realmente muda. Sempre muito sério, duro e rígido, passar por esta luta trouxe reflexões como “por que tanta cobrança e corre corre?”.

“Onde tudo isso leva se lá no final é tudo igual, se chegou tua hora nada adianta, não importa onde mora, quanto tem no banco, se chegou na hora da reunião e os outros não. Então, essas coisas acabam tendo um valor menor e a valorização do convívio familiar, já tão forte durante a pandemia, se torna ainda mais importante”, destaca.

Mesmo que estivesse já restabelecido em termos de saúde, sua vida profissional ainda não teria retornado por força dos protocolos e da situação da pandemia.

Na vida pessoal, ressalta o apoio dos pais, da esposa, dos irmãos. “Foram sensacionais, me dando todo suporte, força e incentivo. Se não fosse a atuação deles, com as atitudes que tiveram, com proatividade, todo cuidado, carinho e afeto, minha recuperação estaria sendo muito mais difícil”, reconhece.

“Projetos e sonhos continuam, mas a gente percebe que eles podem esperar um pouco. O mais importante é que está todo mundo aqui, vivo e com saúde. As coisas simples passaram a ter ainda mais valor, como assistir a um desenho com a filha ou tomar um chimarrão no pátio. Coisas que acabam sendo muito mais valorizadas do que antes”, alerta.

Mensagem aos leitores

“Minha mensagem é de que as pessoas se cuidem e respeitem esse vírus. Pessoas sadias e de todas as idades estão sofrendo muito. Essa nova cepa P1 é muito mais contagiante e danosa do que a do ano passado. Fica o pedido para evitar jantares, encontros de turma e tudo aquilo que não for essencial para o seu sustento. Trabalhar é fundamental, mas não é o momento para lazer e diversão, por mais difícil que seja viver assim”, finaliza.

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