Aos 12 anos, Amanda Lopes encanta com sua gaita

Do bisavô Auri, de 82 anos, aos dedos da bisneta, passa o fio de uma tradição no acordeom, que atravessa quatro gerações e se renova em cada acorde

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Menina Amanda Lopes, 12, toca desde os nove e hoje apresenta shows com músicos profissionais, demonstrando talento incomum / Crédito: Anderson Lopes

A menina Amanda Lopes (12) chama a atenção em bailes e festas familiares com a execução de diversas músicas na gaita. Lado a lado, bisavô e bisneta tocam bailes e envolvem toda a família. O pai, Daniel Lopes, também sabe tocar e acompanha a evolução da filha. A menina despertou interesse pelo instrumento de forma espontânea, e, agora, o silêncio da casa, no alto da Linha Harmonia, é preenchido pelo som alegre do acordeom.

O instrumento é o fio condutor de uma história familiar, um patrimônio imaterial que pulsa no sangue de quatro gerações. Tratam-se dos mesmos acordes que, há quase 60 anos, saíam da gaita de 24 baixos do jovem Auri Lopes, hoje com 82 anos – um homem cuja vida é um registro vivo da história regional de Teutônia, conhecido principalmente em Linha Harmonia como o “homem do tempo”.

Do alto do morro, ele não erra uma previsão. Esta sensibilidade o fez aprender a arte do fole. Sentado em sua cadeira, suas mãos, que por décadas manejaram o arado e as rédeas, ainda encontram na gaita um refúgio de poesia. Auri começou a tocar aos 24 anos, em uma época onde o acesso à cultura era raro. “Não tinha tecnologia. Nós tínhamos rádio”, conta, com a voz grave carregando o peso e a doçura das memórias.

Sua vontade de tocar era tanta que persistiu mesmo após o casamento. “Meu irmão mais novo ganhou uma gaita do meu pai. E eu disse para minha esposa que eu também iria comprar uma”, lembra. A primeira ele não esquece. Foi uma “gaitinha” de 24 baixos.

Diferente da bisneta, ele não teve mestre. Seu professor foi o próprio ouvido, a audição fina e a paciência do autodidata: “Tudo que eu toco é de ouvido”. Seus artistas inspiradores eram os Irmãos Bertussi, gaiteiros famosos que embalavam as tardes na Rádio Popular.

Ao longo da vida, Auri teve oito gaitas. “Eu vendia e comprava”, explica. E foi subindo na escala até chegar a uma gaita de 60 baixos. “Até chegar a uma Todeschini, daquelas bem antigas”, cita. Ver a bisneta Amanda não apenas tocando, mas estudando com técnica e levando a música a sério é, para ele, a realização de um ciclo. “É um orgulho muito grande”, diz, com voz embargada.

O reconhecimento é humilde, do mestre prático e autodidata para uma discípula aplicada que vai além. “Ela aprende fácil. Até hoje, não aprendi a tocar assim como ela, com todos os cinco dedinhos. Eu toco só com três, quatro dedos”, relata.


As quatro gerações compartilham sabedoria e herança musical com o talento de Amanda na gaita ponto / Crédito: Anderson Lopes

O incentivo que conduz a melodia

Os pais Daniel e Simara, ambos produtores rurais, são a ponte geracional e porto seguro. Daniel também toca gaita “de ouvido”, com forte influência do pai, Airton, e do avô. Foi ele quem percebeu o talento precoce da filha. “Ela faz aula de musicalização desde os 4 anos. Depois, eu comprei uma gaita e ela gostou mais. Pegou bem melhor, mais rápido, fácil”, conta. Ele é o que chama, com bom humor, de “paitrocinador”, o provedor do instrumento, o motorista para ensaios e apresentações e o olhar atento na plateia.

Sua fé no talento da filha é inabalável: “No que depender de mim, ela vai longe ainda. Não vou parar de acreditar nela”, afirma. Já Simara é a força emocional e logística. É ela quem exerce o “táxi amoroso”, levando e trazendo a filha, e quem acompanha os ensaios em casa, “puxando a orelha” para que treine um pouco mais. Para ela, o maior orgulho é a dedicação de Amanda.

Um dos momentos mais marcantes para a família foi quando a menina foi selecionada para tocar em Brasília junto da Orquestra Henrique Uebel, em agosto de 2025, encerrando a turnê “Pra Sempre Sertanejo”. A apresentação aconteceu no Teatro da Caesb e também incluiu oficinas de música para jovens em Taguatinga. “Escutamos na rádio, aí o coração começou a bater bem forte”, recorda Simara.

A ansiedade da partida de avião deu lugar ao alívio e ao orgulho com o retorno vitorioso. “Ela sempre mandava mensagem, contava todas as novidades. Marcou ela também”, conta a mãe. Foi quando perceberam que o talento de Amanda não era apenas um dom familiar, mas um passaporte para o mundo.

A próxima geração

Enquanto Amanda desponta no meio artístico como uma grande promessa, o som executado com a leveza da infância é visto agora com a seriedade de uma guardiã do legado da família.

Amanda Lopes acumula três anos de estrada tocando em palcos e bailes. O interesse, no entanto, não nasceu de uma vontade súbita, mas de uma semente plantada no cotidiano, no colo da observação. “Eu sempre olhava meu bisavô e meu pai tocando, daí eu também tive vontade”, relembra ela, com voz tranquila, mascarando uma grandiosidade musical herdada. Não foi um impulso, mas um despertar natural, como quem aprende a falar ouvindo os pais.

O primeiro contato formal com a música veio ainda mais cedo, aos 4 anos, com aulas de musicalização. A flauta doce foi a porta de entrada, mas foi ao pegar a gaita-ponto que ela sentiu algo mais forte. Sua mãe, Simara, agricultora de mãos calejadas e coração mole, lembra do momento com clareza. “Ela pegou a gaita uma vez na cama, no quarto. Começou a dar uma olhada, abria e fechava… e já estava tirando umas notinhas. Foi bem tranquilo e natural para ela”, conta.

A fase do “barulho” dentro de casa, comum para iniciantes, não ocorreu como de costume. Amanda pareceu reconhecer o instrumento como um velho amigo e o tratou bem, tirando musicalidades desde o início.

A primeira gaita que ganhou, “mais barata e leve”, foi um presente do pai. A primeira música aprendida foi Asa Branca, de Luiz Gonzaga, um marco para a família. A escolha não é aleatória. É um batismo na cultura musical nordestina que, no Sul, se entrelaça com a tradição gaúcha. Mas o coração de Amanda, desde cedo, se inclinou para as “gauchescas”. Isto devido ao ritmo tradicionalista que fala de prendas, peões, campos e amores campeiros.

Hoje, Amanda não toca sozinha. Ela é integrante do grupo de gaitas do professor Marco Henrique Osterkamp, com o qual se apresenta em bailes, festivais e eventos comunitários. Seus palcos favoritos são os bailes da terceira idade, onde sobe ao palco ao lado do bisavô, Auri. É nessas horas que a magia acontece. Quatro gerações se encontram naquele espaço: o bisavô, o avô/pai (Daniel) e a neta/bisneta, todos unidos pela mesma linguagem musical.

Ela, que tem Mano Lima como artista inspirador, já enxerga a música como uma missão. “Eu me sinto bem feliz por levar essa música, o histórico da família e a cultura também”, reflete. É uma consciência rara para uma criança, pois compreende que não apenas reproduz notas, mas é a guardiã de uma história.

Bênção para perpetuar a história

O recado do bisavô Auri é simples e profundo: “Que ela continue assim como está tocando agora e vá em frente. E eu quero que Deus dê muita força para ela”. É a bênção de um patriarca que vê seu próprio eco no futuro.

A saga da família Lopes de Linha Harmonia é um testemunho poderoso de que os laços mais fortes nem sempre são visíveis, mas audíveis. É uma história sobre como a cultura se perpetua, não por decretos ou museus, mas pelo afeto, pelo exemplo e pelo som que invade a alma das novas gerações.

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