Historiadora e arqueóloga pesquisam sobre a trajetória dos índios Guarani no Vale do Taquari

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O legado dos índios Guarani ao Brasil é enorme. Podemos citar a linguagem como uma das principais. Os Guarani são associados ao tronco linguístico Tupí, especificamente à família linguística Tupí-Guaraní – a única entre as outras nove famílias linguísticas que compõe o tronco Tupí que se expandiu para fora da Amazônia, o que ocasionou uma das maiores expansões linguísticas da América do Sul. Existem evidências de que os Tupí teriam partido do sudoeste amazônico, próximo ao atual Estado de Rondônia, e chegado até o Sul do Brasil há 2000 anos. Não se sabe ao certo quais os motivos do deslocamento, mas fatores ambientais, demográficos e sociais são as possíveis explicações. 

O espaço denominado hoje de Vale do Taquari também carrega as marcas deixadas pelos Guarani. Há cerca de 600 anos houve uma massiva ocupação desses povos na região. A pesquisa sobre a herança deixada pelos Guarani ao Vale do Taquari é desenvolvida pela arqueóloga Fernanda Schneider e também pela historiadora Tuani de Cristo, durante pesquisas de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), mestrado e também doutorado, todos vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento da Univates. Entre as contribuições que deixaram para a região, está a inserção de cultivos e plantas que foram domesticadas em áreas distantes e trazidas para o Vale do Taquari junto com o  pacote botânico que traziam consigo durante a ocupação dos novos territórios.

Sobre as plantas que por aqui ficaram 

Durante o mestrado, Fernanda analisou especificamente o sítio arqueológico RS-T-114, as margens do Rio Forqueta, em Marques de Souza – que no passado representava uma grande aldeia Guarani. Com a análise deste espaço foi possível concluir que os povos apresentavam um sistema de assentamento composto por redes de aldeias conectadas por alianças políticas, laços de parentesco e uma organização espacial ampla. 

Praticamente tudo o que se conhecia  sobre a botânica desses povos provinha  de documentos históricos do período colonial ou dados etnográficos atuais. “Apesar de essas serem fontes importantes, o conhecimento sobre o consumo de plantas entre os Guarani pré-coloniais, isto é, dos Guarani anteriores aos contatos com os europeus, não é possível apenas com esse tipo de fonte, carecendo de dados obtidos diretamente do registro arqueológico”, explica Fernanda.  

Diante deste problema, a arqueóloga pesquisou quais seriam as plantas úteis aos Guarani que habitavam a porção centro-sul do Taquari-Antas em tempos pré-coloniais. Para isso analisou dois tipos de vestígios botânicos microscópicos que resistem ao tempo: grãos de amido e os fitólitos, assim como restos de sementes carbonizadas. Entre outros resultados, foi encontrado vestígios de milho, feijão, mandioca e provavelmente abóboras, demonstrando que esses povos possuíam um sistema de cultivo de alimentos domesticados bem desenvolvido quando chegaram ao Vale do Taquari, antes dos europeus. Esses são os vestígios de cultivos domesticadas mais antigos reportadas para a região até o momento. 

A ocupação que durou mais tempo que o esperado 

Com a análise desses resultados, foi possível refinar a cronologia do sítio arqueológico do Vale do Taquari. Os dados chamam atenção pois indicam que o espaço foi ocupado por quase quatro séculos. Isso significa que a aldeia apresentou alta permanência, mantendo-se ativa mesmo depois do início da pressão colonial de jesuítas e de expedições de bandeirantes na região a partir do ano de 1630.

No doutorado, Fernanda buscou entender a dinâmica de ocupação Guarani a partir de uma perspectiva social e política. O objetivo era saber qual o impacto ocasionado pela chegada desse povo sobre os novos territórios e sobre os antigos povos que ocupavam os arredores da região. “É importante destacar que outros povos já circulavam por essas terras muito tempo antes. Por exemplo, datas radiocarbônicas (C14) apontam a existência de caçadores-coletores se movimentando pelo Rio Taquari-Antas e afluentes entre 10000 e 2000 anos antes do presente. Além disso, povos Jê Meridionais habitavam as terras altas do Vale do Taquari desde 1100 anos antes do presente”, lembra a pesquisadora. 

As transformações políticas e sociais que os Guarani sofreram ao longo da ampla cronologia regional, uma vez que passaram por intrincados eventos históricos na sua trajetória, foi o tema da pesquisa de Fernanda e também da historiadora Tuani de Cristo. 

As lideranças Guarani 

Em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) Tuani de Cristo abordou as relações entre lideranças Guarani e Jesuítas no século 17 na Província do Tape – frente missionária que correspondia a uma área de dominação espanhola que estava ao encargo da Companhia de Jesus, no século XVII. A Província do Tape correspondia aos territórios dos rios Ibicuí, Jacuí e Pardo, que atualmente estão em jurisdição do Rio Grande do Sul. No território do Vale do Taquari, que fazia parte da Província vizinha do Ibiaçá, não houve o estabelecimento de reduções jesuíticas, mas sim incursões dos missionários por estes territórios, registrando o nome de algumas lideranças Guarani destes locais. 

Em 1635 os coletivos Guarani foram convidados a integrar as reduções jesuíticas próximas ao rio Jacuí. Dentre os caciques citados na documentação, estão os caciques Naee cujos territórios estavam situados à margem esquerda do rio Taquari; o cacique Ibiraparobi que as pesquisas indicam que teria sido uma liderança dos territórios próximos ao rio Guaporé; também havia nas proximidades do rio das Antas, uma liderança chamada de Parapopi. “As negociações oscilavam conforme as situações vivenciadas e conforme os interesses dos Guarani. A partir dessa documentação, é possível concluir que os Guarani atuaram como sujeitos históricos”, explica Tuani. 

O legado indígena

“Os indígenas fazem parte da sociedade brasileira não somente no passado, mas também na atualidade. Suas marcas, embora presentes, na maioria das vezes, não recebem seu devido reconhecimento e crédito, a exemplo de dois símbolos da identidade gaúcha, como é o caso do chimarrão e do churrasco, práticas, respectivamente típicas, dos indígenas Guarani e dos indígenas Charrua e Minuano”, afirma o professor doutor do Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento e do Curso de Graduação em História Luís Fernando da Silva Laroque.

Conforme o professor, censos oficiais das últimas décadas no Brasil, revelam mais 240 etnias indígenas distintas e também mais 180 línguas indígenas. Isso indica que há um expressivo e atual contingente populacional com histórias e saberes, mas que por séculos tiveram suas vozes silenciadas. Além do mais, existem legislações sobre a obrigatoriedade de contemplar a temática indígena em currículos da educação básica e superior. “É de fundamental relevância pesquisar a temática, tendo em vista que os indígenas também fazem parte da ancestralidade de nossa região”, afirma.

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