Pesquisa da Univates estuda a relação e a ação feminina das sociedades Kaingang

Estudo foi conduzido nas Terras Indígenas Jamã Tÿ Tãnh, de Estrela, e Topẽ Pẽn, de Porto Alegre

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A pesquisa de Juciane abordou a agência do feminino Kaingang / Crédito da foto: Elise Bozzetto / Divulgação

No dia 19 de abril é celebrado o Dia Nacional do Índio. A data tem levantado discussões acerca da terminologia “índio” que, ao longo do tempo, passou a ser entendida como tendo um significado inadequado em relação ao contexto das sociedades e culturas que habitavam o Brasil antes da chegada dos europeus. 

O professor Luís Fernando da Silva Laroque, doutor em História e docente da Universidade do Vale do Taquari – Univates, observa que a data de 19 de abril foi instituída pelo governo do presidente Getúlio Vargas, em 1943, como resultado de pressões do movimento indígena latino-americano sobre o descaso das autoridades do continente para com os povos indígenas. Essas pressões também deram origem ao Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, ocorrido no México, pouco antes, em 1940. 

Segundo o docente são legítimas as críticas a “19 de abril” e ao termo “índio”, designação atribuída e que não expressa as mais de 300 etnias ameríndias brasileiras com costumes, línguas e traços culturais próprios. “Respeito este debate, mas o que de fato importa é o tratamento dado aos povos indígenas pela sociedade brasileira no que se refere aos seus conhecimentos, jeito de ser, fazer e de estar no mundo e o acesso aos direitos constitucionalmente instituídos, pois nossa mentalidade, infelizmente, ainda está permeada por uma visão colonialista e etnocêntrica”, explica ele. 

As fotos retratam etapas da pesquisa da doutora, momento em que Juciane realizou incursões em campo para realizar observações / Crédito da foto: Juciane Beatriz Sehn da Silva / Divulgação

Para que antigos preconceitos cedam espaço a novos entendimentos é necessário conhecer mais – momento em que universidades podem contribuir para o rompimento de paradigmas históricos e conceituais. 

A Univates, por meio de diversos projetos, busca ampliar o conhecimento sobre as comunidades indígenas da região dos Vales, especialmente por meio de trabalhos encabeçados pelo professor Laroque e outros docentes no Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento (PPGAD) e no curso de História. É nestes projetos que nascem pesquisas e ações de extensão que contribuem para estimular as discussões e promover o contato da academia com o saber e o conhecimento indígena. 

Uma pesquisa de doutorado do PPGAD orientada por Luís Fernando Laroque se dedicou, entre 2017 e 2020, a investigar a relação com os territórios, corpos e pessoas na sociedade Kaingang a partir da ótica feminina. 

É a tese de doutorado de Juciane Beatriz Sehn da Silva, produzida no âmbito do projeto de pesquisa Identidades étnicas em espaços territoriais da Bacia Hidrográfica Taquari-Antas/RS, e do projeto de extensão História e cultura Kaingang, ambos coordenados pelo professor Laroque. 

O estudo contou com financiamento da pesquisa pelo Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições Comunitárias de Educação Superior (Prosuc) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). A pesquisa estabelece interfaces entre a História, a Antropologia, a Sociologia e as Ciências Ambientais ao abordar interações entre sociedade – a Kaingang -, e natureza, ocupações humanas, organizações sociais, saúde e ambiente e práticas culturais. 

Os objetivos da pesquisa

O estudo buscou ampliar a discussões que abordam as trajetórias dos indígenas na História, pois congrega os modos Kaingang de saber, relacionar e conceber o território e o ambiente, apontando para outras relações possíveis entre “sociedade-natureza” para além daquelas instituídas pelas sociedades europeias. Juciane relata que o objetivo da pesquisa foi analisar de que formas as trajetórias de vida ao longo do tempo influenciam as relações, os corpos e as pessoas, evidenciando também a ação do feminino Kaingang a partir da perspectiva da manutenção dos coletivos das Terras Indígenas (TI) Jamã Tÿ Tãnh, de Estrela, e Topẽ Pẽn, de Porto Alegre.

Potência do feminino 

A atuação do feminino ao longo do estudo é compreendida como sinônimo de potência. Assim, a potencialidade agentiva das mulheres Kaingang junto à sua coletividade indígena é estabelecida a partir das capacidades de interagir e agir;  mobilizar; transformar e formar; desconstruir e construir; conhecer; e produzir afetações, de acordo com as maneiras de ser da comunidade Kaingang. 

A tese propunha a constituição conjunta e a indissociabilidade entre corpo, pessoa e território – e os estudos de Juciane a partir do feminino nas Terras Indígenas confirmam esta perspectiva. 

“O corpo e a pessoa Kaingang constituem-se num microcosmo de relações estabelecidas nas trajetórias de vida e no ‘trajetório indígena’ e nesse fluxo o feminino Kaingang configura uma expressão potente, capaz de tecer agenciamentos e conexões, fundamentais para a manutenção dos coletivos nos quais elas se inserem”, afirma a doutora. 

Para Juciane, muito embora sejam pressionados e envolvidos pelo sistema  capitalista, que acaba por descaracterizar, homogeneizar corpos e pessoas, os Kaingang se movimentam no contrafluxo, pois continuam a pensar, agir e a interpretar os mundos como Kaingang, a partir de uma cosmologia própria. 

“Ainda se verificou que as mulheres Kaingang agem de forma complementar e inclusiva nas lutas pela terra e nas relações intra-aldeã. Desta feita, a fabricação e a transformação de corpos e pessoas Kaingang constituem um construto que envolve a agência de homens e mulheres”, afirma a pesquisadora. 

“Cada pessoa é a objetificação das relações que a produzem, das afetações que a atravessam. Ao focalizar as narrativas femininas sobre processos de retomada e reivindicação de terras, foi possível entender que a luta contínua pela terra é também uma luta protagonizada pelas mulheres Kaingang que vão para os fronts de disputas, colocam seus corpos à frente e assumem papéis relevantes, sendo, portanto, partícipes ativas desse processo”, descreve a doutora.

Crédito da foto: Juciane Beatriz Sehn da Silva / Divulgação

“Trajetório indígena”

“Dentre as surpresas do estudo está o encontro do “trajetório indígena”, apresentado por uma das interlocutoras Kaingang durante pesquisa de campo realizada na Terra Indígena Topẽ Pẽn”, explica Juciane. “Trajetório indígena” é como os próprios coletivos indígenas identificam o percurso no tempo que os traz ao presente. 

Para Juciane, conceitualmente, o “trajetório indígena” se configura como uma teia territorial, conectando corpos e pessoas Kaingang que, em temporalidades diversas se movem sobre o território, estabelecendo uma malha de relações entre si e com os ambientes. “O que está em movimento, a nosso ver, são modos de fazer e pensar a política, de viver as relações socioculturais com o corpo de parentes, de equacionar relações e tensões intra aldeãs, de fazer e promover alianças, festas, encontros, resistências, conhecimentos”, afirma a pesquisadora.

Ao longo do tempo os Kaingang foram protagonistas de diversos deslocamentos dos territórios do Alto Uruguai ou da região hidrográfica do rio Pardo. Juciane estabeleceu, a partir das pesquisas, as motivações das movimentações como sendo relacionadas, na visão dos indígenas com os quais conversou, a fatores e eventos ligados à cosmologia e à sociabilidade desses coletivos, que dimensionam a complexidade do pensamento Kaingang (Kanhgág jykre). 

“Contudo, interpreta-se também que o movimento de saída desses territórios em direção às Bacias Hidrográficas do Lago Guaíba e do Taquari-Antas se deve a uma tentativa de reconstituir um outro modo de vida e de romper com um modus operandi de um sistema de exploração e dominação material e subjetiva vivenciado, pelo menos em parte”, explica ela. “É, também, uma estratégia de equacionar conflitos internos, sobretudo tratando-se dos coletivos oriundos de Terras Indígenas do Alto Uruguai”.

O estudo permite estabelecer que o corpo é central e detentor de mobilidade, ação e percepção para os Kaingang. “A dimensão da territorialidade fundada nos territórios ocupados pelos que se movem está ligada aos cursos d’água e às áreas de mata, e é própria de uma (eco)lógica que acompanha os Kaingang há milhares de anos”. Estes movimentos fazem parte do “trajetório indígena”, que emergiu a partir da pesquisa.  

“Essa é a chave para o entendimento de que é no movimento que as pessoas vão se constituindo conjuntamente aos seus territórios. Dessa forma, mover-se sobre o território tem a ver com a manutenção dessa rede de contatos, calcada na sociabilidade Kaingang, mas também nas relações que estabelecem com os diferentes entes que constituem o território. Mover-se sobre o território adquire uma dimensão de um ‘modo de ser e viver’ Kaingang que se molda e é moldado no transcurso deste ‘trajetório indígena’”, explica a doutora. 

Compreensão regional

O estudo apresenta uma compreensão das movimentações vividas pelas comunidades indígenas da região – que as trazem até a contemporaneidade compartilhada com outras sociedades. “Possibilita ampliar o conhecimento sobre coletivos indígenas que há muito empreenderam sua viagem de volta para espaços territoriais da Bacia Hidrográfica Taquari-Antas, inserida no tradicional território Kaingang, desconstruindo estereótipos”, diz Juciane. 

A produção de conhecimento sobre os Kaingang das TI Jamã Tÿ Tãnh/Estrela e Topẽ Pẽn/Porto Alegre, a partir de suas especificidades e trajetórias históricas e culturais no tempo e no espaço, é importante pois demonstra que os indígenas se mostram como sujeitos sociais ativos diante de processos de interação com a sociedade em geral, agenciando as relações e ações de formas variadas, movidos por interesses próprios e de acordo com suas cosmo-ontologias. 

“Buscou-se, também, contribuir para a elaboração de uma História em que os indígenas sejam pensados nos seus múltiplos aspectos e perspectivas espaciais e temporais, com ênfase nas realidades regionais relacionadas às inter relações em territórios das Bacias Hidrográficas do Alto Uruguai, Rio Pardo, Taquari-Antas e Lago Guaíba”, explica a doutora. 

A metodologia

Além de fontes bibliográficas e documentais, o trabalho de Juciane contou com a pesquisa de campo e as técnicas de observação participante como fundamentais. A partir disso, Juciane frequentou o campo de pesquisa de forma regular, adotando o método da História Oral utilizado para a aplicação de entrevistas abertas. Foram realizadas onze entrevistas com indígenas e setenta e nove saídas de campo. Utilizou-se a análise de conteúdo no tratamento dos dados da pesquisa.

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