Covid leva mais uma vida cheia de planos e sonhos

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Registro dos tempos de Samu / Crédito da foto: Arquivo Pessoal

Mais um caso positivo, mais uma internação, mais uma morte, mais um número que entra para a soma na estatística. Estamos chegando perto de 300 mil mortes em pouco mais de um ano. São 285 mil filhos, pais, mães, avós, amigos, colegas.

Cada pessoa que parte, seja após algumas horas ou dias de sintomas, deixa dor, lembranças, saudade e uma história de vida para trás. Uma história que continuaria, não se sabe se por horas, dias, meses, anos, alguns, talvez décadas. A pandemia mudou esta aparente lógica.

O fato é que cada uma dessas vidas deixa uma família enlutada, uma comunidade comovida, profissionais de saúde se sentindo impotentes.

Cada história merece seu registro. Cada pessoa deixa sua marca neste mundo. E é com o objetivo de retratar esta realidade que iniciamos esta série. Cada número desta estatística representa uma pessoa querida por alguém, uma vida, uma história interrompida, que merece ser contada.

Everaldo de Oliveira Rodrigues, 51 anos, é uma das pessoas que, apesar do seu bom humor, disposição, empatia com o próximo e sonhos de vida, não conseguiu vencer a Covid-19.

Mesmo com toda mobilização de esforços, de tantas pessoas que, inclusive, trabalharam a seu lado no enfrentamento da pandemia, tudo foi insuficiente para lhe garantir o ar e a condição que precisava para seguir em frente.

É na certeza do além e na fé que ele tanto compartilhava e pregava, que a família encontra forças para lidar com a perda precoce. Sim, ele tinha muitos planos, projetos e sonhos. E batalhava por cada um deles.

Casado há 32 anos com Ana Cláudia Labres, pai de três meninas, Júlia de 29, Amanda de 26 e Camily de 17 anos, era ainda pai de coração de uma afilhada que foi criada como filha, de 7 anos.

A quantidade de homenagens nas redes sociais e diferentes espaços, assim como as mais de 3 mil mensagens recebidas pelos familiares, mostram o quanto sua caminhada impactou pessoas e vidas.

Natural de Taquari, mudou-se para Teutônia em 2010, onde ingressou como bombeiro voluntário em fevereiro de 2012. No mesmo ano, em agosto, iniciou seu trabalho no SAMU, atuando até maio de 2016. Só nesses trabalhos se tem ideia de quantas vidas ele ajudou a salvar e quantas pessoas pôde auxiliar.

Sedento por conhecimento, sempre amou estudar. Era técnico em química e colecionava uma pasta de certificados e diplomas. Em 2013 se inscreveu no Enem, como uma forma de incentivar as filhas a fazer também. Passou e então ganhou uma bolsa pelo ProUni na Unisc em Venâncio Aires.

Na época, trabalhava no Samu e ia para Venâncio estudar. Como prova de sua dedicação e foco, estava sempre entre as melhores notas da turma. Em 2014, iniciou o curso de Direito. “Porque ele queria nos dar uma vida melhor”, conta a filha Júlia, que fala em nome da família enlutada.

Em 2017, uma nova oportunidade se apresenta e ele inicia como condutor junto à Prefeitura de Teutônia. “Carregava os médicos, enfermeiros, entre outros, e, em 2019 foi promovido a coordenador das Unidades de Saúde do município”, conta a filha orgulhosa.

Por estar em um cargo de confiança, encerrou este trabalho ao final do mandato (2020) e agora se dedicava aos estudos. A meta era realizar o concurso da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Seu sonho era ser delegado!

Dedicação e comprometimento

Sua dedicação enquanto servidor público é ratificada pelo então prefeito Jonatan Brönstrup, que destaca o grande legado que Everaldo deixou. “Ele de fato contribuiu muito com a saúde de Teutônia. Sempre disposto a ajudar todos, não tinha horário, não tinha tempo ruim, estava sempre junto na tomada de decisões”, relata.

Responsável pelo posto de saúde mais movimentado de Teutônia, durante sua atuação no poder público esteve também na linha de frente, em 2020, junto com médicos e servidores, sempre participativo e defendendo as medidas de prevenção diante da pandemia no Comitê de Enfrentamento ao Coronavírus em Teutônia.
Com olhar humano, Jonatan lembra que foi ele quem sugeriu o toldo em frente ao CAS em Canabarro, para proteger as pessoas nos dias frios ou chuvosos do inverno. “É uma perda irreparável, de um profissional que também atuou no Samu. É muito triste perceber que perdemos pessoas que estiveram na linha de frente, correndo risco diário. Precisamos nos cuidar e seguir os protocolos em respeito ao Everaldo e a todos profissionais da saúde”, finaliza Jonatan.

Luta contra a doença
Everaldo internou no dia 5 de março. No dia 8, o médico responsável informou à família que ele entrara para a lista de espera por UTI. No total, foram 8 dias no hospital.

“Entramos inclusive por meio judicial, tentamos internação particular, de maneira alguma existia vaga em UTI”, recorda a filha, dos momentos angustiantes.

Um dia antes de falecer, no dia 12, foi conseguido um leito em Vacaria, mas infelizmente sua condição não permitia ser transportado para tão longe.

Despedida dos colegas

A enfermeira Helô Mello, que foi colega de Everaldo no Samu e na Prefeitura, sentiu forte abalo ao se deparar com a necessidade de cuidar do colega e amigo durante seus dois primeiros plantões no Hospital Ouro Branco neste mês de março. Após o falecimento, deixou mensagem nas redes sociais.

Mensagem da enfermeira Helô Mello

“Hoje pela manhã quando saí de seu lado no hospital me despedi de você com um até breve, até o próximo plantão! Everaldo, um guerreiro que lutou pela vida dos outros sem medir esforços e também lutou muito pela sua própria vida naquela cama do hospital, naquele respirador que lhe soprava um restinho de vida e, para nós seus amigos e profissionais da saúde, uma esperança que você sairia desta. Não foi fácil para mim te ver desta forma, administrar as medicações na veia, verificar teus sinais vitais, sussurrar no teu ouvido: vamos lá Everaldo, não desista, estamos aqui te esperando. Tu, aquele cara sempre forte e à disposição para ajudar o próximo. Trabalhamos juntos no Samu Teutônia, fui tua coordenadora e depois você meu coordenador na Prefeitura. E assim foi a vida fazendo com que eu cruzasse sempre sua vida e quando eu menos esperava fui convidada para trabalhar no hospital e no setor em que você estava internado. Amigo, você foi o paciente que eu tive e que me abalou a cada cuidado que lhe prestava. Amigo, vais continuar brilhando, só que agora no céu.”

Crédito da foto; Arquivo Pessoal

Diálogo e comprometimento

A morte de Everaldo impactou muitas pessoas. Além dos familiares, muitos profissionais da saúde sentiram luto pela perda. Entre eles, o médico Humberto Alencar da Costa foi um dos que atuou lado a lado com ele.

Nesta semana, faixas e cartazes sinalizaram a dor em seu espaço de trabalho, afirmando o luto pela vida de Everaldo e dos mais de 40 teutonienses vítimas da Covid-19.

“Uma pessoa extremamente simpática, agradável, sempre com discurso moderador e excelente capacidade de gestão de grupo. Ele ouvia as pessoas, escutando todas as partes, sempre tentando aproximar e agregar” qualificou.

“Advogado de profissão, gostava de debater no confronto das ideias, mas sempre na base do diálogo e do discurso qualificado, para chegar ao alinhamento de ideias”, descreve o médico.

Entre outras qualidades, Humberto destaca a habilidade de liderança. “Um grande líder, que pacificou a relação entre diferentes níveis profissionais, fazendo com que todos atuassem envolvidos na mesma causa, de forma coesa. Uma pessoa incansável, determinada e comprometida, estava junto e trabalhava ombro a ombro, ensinando, orientando e substituindo quando necessário. Uma pessoa que não se escondeu, nem omitiu, enfrentou os desafios, assim como os demais membros do Comitê, sempre com espírito de equipe”, explicou.

Reciprocidade de afeto e de respeito

Humberto relata o impacto da notícia da morte sobre as equipes de saúde e os profissionais médicos. “A gente fica deprimido, chateado e frustrado. Todos ficaram muito sentidos. Para mim, é significativo e impactante perder um colega, uma pessoa que trabalhou junto no combate ao coronavírus e perdê-lo justamente para esta doença tão terrível e que chega agora tão agressiva com as novas variantes. Está bem difícil lidar com esta questão, pois ele era um amigo leal, que são raros de encontrar na jornada”, relata.

Por outro lado, Humberto destaca que é preciso encontrar forças todos os dias, cada um fazendo a sua parte. “Temos um inimigo grave, que não se importa com identidade, vai se disseminando e contagiando”, desabafa.

Reconhecimento em massa

O carisma e a competência de Everaldo são reafirmados por muitas pessoas que cruzaram seus caminhos. Na tarde de quinta-feira (18/3), a família recebeu uma das homenagens que fez as lágrimas serem impossíveis de segurar.

Uma carta, assinada por inúmeros médicos do município de Teutônia, reconhece suas qualidades e toda contribuição para com a saúde no Município e deseja força aos familiares.

Ao ler cada palavra escrita, que veio acompanhada de uma flor e muitas assinaturas, a família se emociona, mas se acalma e conforta, com orgulho da caminhada exemplar do pai e esposo.

Fé, compreensão e alerta

A técnica em radiologia no Hospital Ouro Branco, Gabriela Borges Oliveira, deixou mensagem para o Everaldo, seu padrinho de casamento. “Não tenho palavras pra descrever o que estou sentindo hoje.. Perdemos um exemplo de ser humano, que lutou tanto para fazer sua faculdade, um exemplo de esposo, pai e amigo”, afirmou.

“Te prometi que ia cuidar minha amiga Ana Cláudia Labres e das meninas e estarei com elas neste momento muito difícil. Voa meu amigo, Deus tem uma missão ainda maior pra você. Para nós, resta entender. Saudades eternas.”

Gabriela também faz o alerta: “Para aqueles que ainda acham que Covid não é nada, repensem. Levou uma pessoa nova, cheia de vida e de planos, em uma semana.

Legado

Muito sério, honesto, determinado, inteligente, temente a Deus, era muito FAMÍLIA, amava estar com todos reunidos, ajudava o próximo sempre e amava seus bichinhos. Assim as filhas definem o pai e levarão seus ensinamentos consigo.

Everaldo com a família / Crédito da foto: Arquivo Pessoal


Conforto

Em nome da família, Júlia agradece à vida de cada um que demonstrou uma mensagem de carinho. “Acalenta nosso coração saber o GRANDE HOMEM que ele foi por onde passou. Não existem palavras que expressem o orgulho que sentimos dele. Recebemos mais de 3 mil mensagens. Não conseguimos responder a todas, mas lemos cada uma com muito amor”, compartilha.

Agradecem, também, de forma muito especial ao médico Guilherme Vogt, que cuidou de Everaldo e a todos envolvidos no atendimento realizado no Hospital Ouro Branco.

Como homenagem, os familiares deixam um versículo de um livro que ele amava pregar, que diz: “Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá; e todo aquele que vive e crê em mim nunca morrerá. Crês tu isso? João 11:25-26”.

Everaldo tinha muita fé e praticava a palavra diariamente. “Ele confiava muito em Deus e sempre falava de Deus para todos”, reforçam os familiares, que agora se agarram na mesma fé para superar a dor da despedida.

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