Em 27 de janeiro de 2013, a maior tragédia já registrada no Estado, e uma das maiores do Brasil, deixaria uma ferida dolorosa e que até hoje não cicatrizou no Rio Grande do Sul e no país. Há 10 anos, no início da madrugada daquele domingo, iniciava o incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria, que resultaria na morte de 242 pessoas e 636 feridos.
Além de incontáveis vidas de familiares, amigos, profissionais de saúde e resgate, e até mesmo desconhecidos, que levam até hoje as marcas daquela noite sem fim. 10 anos depois, o caso segue sem uma punição aos responsáveis, o que aumenta o clamor por justiça em nome das vítimas e dos sobreviventes que carregam sequelas e traumas da tragédia.
Gabriel Rovadoschi Barros, hoje com 28 anos, na época tinha apenas 18. Ele é um dos sobreviventes e preside Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).
Ele lembra que na noite anterior, pela primeira vez, havia ido em uma boate. Na noite seguinte, decidiu aceitar o convite de uma aluna curso de zootecnia para a festa na Kiss. No local, encontrou os amigos do colégio, com quem ficou durante a noite toda. Relembra que seguia os colegas para “aprender sobre essa vida”. “Estava tentando entender como era ser jovem em Santa Maria”, conta.
O jovem lembra que a boate estava muito cheia e era difícil de andar. Em dado momento, cansados de caminhar, ele e outro amigo se separaram do grupo. Foram até outro local, onde não havia visão do palco de shows. Poucos minutos depois, a música parou. “As cabeças começaram a se voltar para o palco, parecia um telefone sem fio, vindo até mim. Diziam ‘briga’, como se tivesse acontecendo uma briga”, relembra.
Imediatamente foi até outro local tentar ver o que acontecia. Foi quando começou o tumulto. As pessoas iam em direção à entrada. Pensando ainda ser uma briga, ele apenas seguiu o tumulto e foi para a porta também. Chegando lá, elas estavam fechadas. “Aí comecei a me dar conta de que era um incêndio”, relembra.
Começou então empurra-empurra para abrir as portas, Barros ainda estava distante e não conseguia enxergar a saída, até que foi atingido pela fumaça. “No primeiro instante, era uma fumaça branca, e pensei ‘era uma briga e soltaram gás lacrimogênio para dispersar o pessoal’. Antes de finalizar este pensamento, a fumaça escureceu, muito rápido. Quando escureceu, me dei conta de que era incêndio”, relata.
O jovem percebeu que não poderia respirar, que não adiantava gritar, pois já tinha gente gritando. O grito seria inútil e ele precisava do ar. Segurou a camiseta na frente da boca e do nariz, manteve os olhos o mais fechados possível, e tentou se apoiar nas pessoas, buscando não derrubar ninguém. “Quando as portas se abriram, a multidão começou a andar, mas eram passos curtíssimos. Consegui sair em pé, andando”, diz.
As cenas da noite de terror, seguem vivas na mente de Gabriel Rovadoschi Barros. Mas ele quer que a tragédia não se apague da memória coletiva. Por isso, convida a todos para responderem: Onde você estava no dia 27 de janeiro? Assim, a intenção é refletir como aquela noite afetou não só os que lá estava, mas todo um estado e nação.
Uma vida marcada para sempre
A vida de Delvani Brondani Rosso, hoje com 30 anos, também ganharia marcas que jamais poderiam ser esquecidas naquela noite de terror. Ele também é um dos sobreviventes do incêndio.
Estava no local com outros seis amigos. Eles entraram na boate por volta da 1h30 da madrugada. O calor já era muito forte, mas por causa da alta lotação da casa em uma típica noite de verão. “Tinha muita gente, ao ponto de eu nem conseguir levantar os braços. Não tinha lugar para ficar. Fomos para o fundo da boate que era o lugar onde tinha um pouco mais de espaço”, conta.
A festa seguia acontecendo, quando ele viu um rapaz ao longe que gritava e acenava para a saída. Pedindo para que todos saíssem. “Ele gritava ‘fogo’. Eu nunca imaginaria o que acontecia, que ia tomar essa proporção”, relembra.
Rosso só se deu conta do que de fato estava acontecendo quando as pessoas se viraram para o lado da saída. Devagar, e com os braços entrelaçados com dois amigos, começou a caminhar entre as pessoas. “Estava calmo, pois até então não tinha correria, ninguém estava apavorado, até então achávamos que conseguiríamos sair”, comenta.
Chegando na metade do caminho, a fumaça começou a aparecer. “Nesse momento, as pessoas começaram a ficar agitadas, a se apavorar e aí virou um caos. Não tinha para onde sair, eram pessoas se batendo, barulho de vidro quebrando”, lembra.
Ele acabou desmaiando. Quando acordou, estava na calçada, na parte externa da boate. Já consciente, se perguntava o que estava acontecendo, por que estava ali. “Ao mesmo, tempo gritando de dor”, revela.
O irmão de Rosso foi quem o tirou da boate. Mesmo salvo, foram anos de recuperação. “Os três primeiros anos foram bem difíceis. A fisioterapia era bem dolorida devido às queimaduras. Tive que me dedicar muito, diariamente, para recuperar a mobilidade”, destaca.
Hoje, ele afirma que tem uma vida quase normal, devido à fisioterapia e dedicação dos profissionais que o atenderam. “Acredito que esses 10 anos foram de muita transformação na minha vida, um divisor de águas, passei a valorizar mais a vida, prestar atenção nos momentos e nas pessoas que eu amo. Hoje, eu tento ajudar o máximo de pessoas que eu posso, independente de qualquer situação. Também valorizo muito os processos na vida, de me tornar uma pessoa melhor a cada dia e melhorar também a minha volta”, conclui.
Mobilizações por memória e justiça
A AVTSM foi fundada após a Missa de Sétimo Dia das Vítimas, ainda em 2013, pelos familiares dos mortos. À época, sentiram a necessidade de uma mobilização coletiva. Três outros presidentes, antes de Gabriel Rovadoschi Barros, estiveram a frente da entidade. Ele é o primeiro sobrevivente a presidir a associação.
Ele considera que ter um dos sobreviventes como presidente também traz efeitos, pois causa mais impacto. “Antes, para a imprensa, era um movimento de familiares. Agora a imprensa pensa: ‘como assim um sobrevivente está presidindo?’. Isso causa um desconforto positivo para eles, de estranhamento, das pessoas se depararem com algo novo neste cenário, e isso surte efeitos”, pondera.
Todo dia 27 de cada mês, é promovida uma vigília, no local da tragédia. “Passamos o dia todo na tenda, marcando a memória, recebendo e dando abraços, para lembrar que não estamos sozinhos”, comenta. Ações na fachada da boate incendiada também são realizadas.
Ele afirma que a associação está sempre em busca da responsabilização jurídica e criminal, de pautar prevenção de incêndios no contexto da Kiss e uma série de outras frentes para construir um futuro mais seguro.
Ao sugestionar que todos rememorem onde e o que estavam fazendo naquele 27 de janeiro, ele convida as pessoas a reconhecerem o trabalho da associação para a sociedade. “A vaidade não é algo que está no movimento, lutamos pelo futuro de todos, para que todos possam se divertir, viver uma juventude digna, para que não percam ela como eu perdi”, pontua.
Ele considera que contar e relembrar esta história é importante para fortalecer o movimento e as pautas dos sobreviventes e familiares das vítimas. Clamar por memória, também é clamar por justiça. Para que nunca se esqueça e nunca se repita.